12.13.2013

O TRAPEZISTA

   "Só o fim da vida da vida, dá sentido a toda a vida"                       
                                                              (Franlois Maurioc)

Já passava das dez da noite daquela quarta-feira modorrenta e chuvosa. Pela janela, ele podia avistar as pessoas caminhando apressadas, contidas por capas ou guarda-chuvas que lhes tornavam todas parecidas, sem contraste.

Ficara o dia todo em casa, apesar de alguns convites recebidos de amigos para sair; alguns para almoçar, outros para um simples café e alguns para um chope no início da noite. Recusara a todos, de forma lacônica. Com alguns, fora até mesmo ríspido, o que contrariava a impressão de todos aqueles com quem se relacionava, pois sempre fora muito atencioso, afável e gentil. Mas, ele não estava bem.

Andava rancoroso, acabrunhado, desconfiado, agitado, esgotado. A vida já não lhe era mais atraente. Tudo a sua volta lhe parecia enfadonho, irritante, mesquinho, sem sentido. Quando olhava para alguém, via apenas um espaço vazio no lugar do rosto, um buraco em cima de um corpo que apenas se mexia por espasmos, sem vida. Era assim que se sentia.


O copo de uísque, agora vazio, equilibrava-se no braço da poltrona. Um tanto zonzo em razão das três doses já bebidas, apoiou-se na beirada interna da janela para se levantar com algum custo. A dor nos joelhos lhe alteraria ainda mais o caminhar já um tanto trôpego,  até o bar onde se serviria de uma nova dose. No esforço de levantar-se corretamente, esbarrou no copo que se transformou em dezenas de pedaços espalhados pelo chão. Soltou um palavrão potencializado pelo efeito do alcool, olhou para o chão para ver o resultado de seu descuido, com o pé direito empurrou para junto da parede os cacos maiores e procurou um novo copo no armário na parte inferior do bar. Abriu a pequena geladeira, apanhou a cumbuca de gelo, bateu com ela, levemente, sobre o balcão a fim de soltar algumas pedras. Repetiu a operação por mais duas vezes e certificou-se de que as quatro pedras eram suficientes pra amortecer o impacto da quarta dose de seu Logan. Era assim que gostava de beber o seu uísque, um tanto aguado para  'matar a sede junto', como costumava dizer. Desta vez, a dose havia sido dobrada e o primeiro gole arrancou-lhe um esgar do destilado ainda quente descendo pela garganta, queimando-a. Procurou a poltrona mais uma vez e dali aquietou-se para continuar a observar a avenida que se espraiava à vista de seu apartamento.

Um táxi estacionou rente à calçada oposta a sua. Uma mulher loura saiu apressadamente do carro e correu em direção à portaria do prédio em frente. Não sabia quem era, nunca a tinha visto antes, mas deveria ser moradora do edifício, pois a porta foi destravada tão logo aproximou-se da entrada. O táxi já havia ido embora, discretamente. 'Será que morava sozinha?' pensou.

Um homem atravessou a rua correndo na frente de um ônibus que precisou frear forte para não atingi-lo. Parecia que o sujeito não se dera conta de que se não fosse pela direção atenta do motorista, ele agora estaria jogado no meio da rua, com o corpo destroçado, sob a fina chuva e irritante, atrapalhando o trânsito. Porém, rapidamente, o homem entrou no mesmo prédio da mulher loura, também sem precisar identificar-se ou aguardar. Aquele homem, também, ele nunca havia visto. 'Eles deviam se conhecer...' conjecturou.

Um gato pardo se esgueirava junto à parede do botequim do qual havia acabado de sair. Desconfiado, tomando cuidado no pisar, parecia flutuar sobre as poças de água em vários trechos da calçada formadas por marolas de água suja empurradas pelos pneus dos carros e ônibus que passavam rente ao meio-fio. Uma delas, por pouco não alcança o gato, mas este numa flexibilidade incrível saltou para dentro da garagem do prédio onde a mulher loura e o homem quase atropelado haviam entrado. Será que o gato também vivia naquele prédio? Será que era de algum deles? Ou de ambos, já que podiam ser casados ou, talvez, amantes? suspeitou.

Alguém do bar de onde o gato havia saído cerrava uma das portas de ferro. O atrito da porta com o caixilho arranhava os ferros, provocando um horrendo gemido metálico. Depois com o pé direito apoiado sobre a tranca, empurrou a porta até que o fecho encaixasse na base. Passou a chave e arriou a segunda porta quase até o chão. Poucos minutos depois começou a sair do interior do bar uma espuma inoportuna para quem passava na calçada salteando as poças d'água, cuidando para não ser atingido pela águas represadas pela guia e agora atento para não levar pelas pernas uma água suja de gordura. Numa varrição mais forte, a espumarada atingiu as pernas de um rapaz que soltou um palavrão alto e grosso em direção ao bar. A espuma continuava a sair, indiferentemente.

Um jovem casal saiu do prédio da mulher loura, do homem quase atropelado e do gato pardo. A menina ao atingir a calçada, parou, repentinamente, olhou para o alto como que a medir o tamanho da chuva. Falou alguma coisa para o seu acompanhante tão jovem quanto ela, ambos sorriram, e de mãos dadas, correram para o outro lado da rua. Preferiu ficar sentado a ter que se levantar para saber qual teria sido o destino do jovem  casal. Ele também não conhecia aqueles jovens.

No bar, a faxina havia acabado. Nenhum sinal de espuma saindo por debaixo das portas, agora todas cerradas. Havia ainda luz acesa no interior da loja. O movimento de carros na avenida havia diminuído com o avançar da hora.

De repente, o relógio postado na sala badalou 11 vezes. Ele não se incomodou com a intromissão barulhenta do relógio que havia herdado da sala de seu avô. Só reparou que as horas haviam avançado bastante e o seu copo estava vazio, novamente. Porém, a chuva continuava na sua queda constante, fina e monótona.

Um pensamento, lhe veio à mente: 'O que iria fazer da vida? 

"Nem sempre ficar a sós consigo mesmo é o melhor que um homem tem para fazer". Ainda mais num estado igual ao dele, pensou. Olhando para trás, percebia que a vida, amiga em sua juventude, agora, na maturidade, lhe dava as costas. Mulheres, posição, dinheiro, amigos de conveniência, fizeram-lhe pressupor uma vida mais fácil e cheia de oportunidades em qualquer lugar, em qualquer situação, em qualquer tempo. Ele era o senhor de seu destino. Mas, um dia se enchera de tudo aquilo, queria mudar, fazer algo diferente, porque o tipo de vida que levava já não suportava. Futilidades e vaidades que por um longo tempo foram companheiras de braço dado, começaram a lhe enjoar. Olhava para o espelho e o que via era um ser amorfo, estranho. Ele não mais podia continuar sendo aquilo. Necessitava de ar. Beirava os 50 anos e ainda não havia encontrado uma mulher de verdade com amor de verdade. Ele que nunca havia pensado em ter um filho, não foi uma, nem duas, as vezes que se percebeu a observar uma criança de mãos dadas com o pai a brincar ou a choramingar. O que antes lhe dava pavor, agora lhe causava uma certa inveja.

Olhou para o relógio e os seus ponteiros marcavam trinta minutos passados das onze. Ele estava bêbado, mas não amolecido pelo excesso de alcool. Ao contrário, seus pensamentos estavam cada vez mais tumultuados, atropelavam-se, e, sentiu-se totalmente só. Arrependera-se de ter recusado alguns dos convites para sair naquele dia. "Antes mal acompanhado do que só", falara para si, numa voz arrastada e nervosa, característica dos ébrios rancorosos.


Reconhecera que não tinha mais nada a fazer ali. A vida passara a ser de um só cor. Com tremendo esforço levantou-se da poltrona, caminhou até o bar, a dor do joelho não lhe incomodava mais, serviu-se de mais uísque, procurou gelo na cumbuca vazia largada sobre o balcão, soltou um palavrão e resolveu beber assim mesmo, sem gelo, com uma grande talagada. A garganta queimada abriu caminho para o estômago receber toda a pressão do destilado. Retornou à janela, olhou para o céu nublado e pontilhado por gotículas de água que continuavam a cair. Esticou a mão com o copo, como num gesto de saudação à chuva, aos céus, deixando gotas de chuva se misturarem com o uísque, sorriu o sorriso dos insanos e com os olhos esgazeados debruçou-se sobre o parapeito da janela escancarada para a comprida avenida que passava embaixo. O copo fugiu-lhe da mão Esticando-se para segurá-lo, desequilibrou-se e como um trapezista que perde o apoio, girou o corpo no ar em confiança da rede de proteção, e de frente para o céu pôde perceber entre as nuvens que se rasgavam, um pedaço da lua como a prenunciar que o mau tempo estava por acabar e que o dia seguinte seria ensolarado. Então, sorriu o sorriso dos pássaros livres e despediu-se da vida, voando. O copo, espatifou-se na calçada deserta.


05 de outubro 2008