8.28.2012

Santa Esperança


Estava eu sentado outro dia à espera do carteiro; você sabe como é, cidade pequena, quase micro, na realidade, um povoado e dos bem pequenos, uma casa distante da outra, verdadeiras ilhas cercadas por largos terrenos cobertos por denso arvoredo. Quase meio-dia, Afonso, o carteiro, estava já um pouco atrasado. Normalmente, não passava das onze e meia e ele despontava lá na curva da rua, próxima à casa do Osvaldo Conceição, pedreiro de mão cheia o qual praticamente havia construído todas as casas da região. Mas, hoje o que será que houve com o Afonso Bastisteu? Ele não é de se atrasar. Mas, vai lá! Eu aguardo. Não tenho nada pra fazer, mesmo. Já tô aposentado, já limpei as gaiolas dos canários, já joguei pras rolinhas o resto assoprado do comida dos meus dois canários belgas: Cidinha e Carlinho. São duas belezas só vendo ou melhor escutando. Carlinho é dono de um gogó que faz com que seu canto bonito e ritmado chegue longe quase lá pra casa da dona Sebastiana, e olha que não é perto não, tá três casas da minha e tudo com quintal grande.

Também já dei uma varrida na casa, na varanda e juntei um bocado de folha lá no fundo do quintal. Lá por volta das cinco da tarde quando o morro do Quadrado tampar o sol, vou lá acender o monte de folhagem seca para espantar um pouco a mosquitarada, que tá demais depois que a prefeitura resolveu mexer no córrego da cidade. Represou água pra gente, é certo, mas complicou um pouco essa coisa de mosquito que sempre existiu, mas agora tá bem mais. Acho também que a iluminação forte pra cima da fachada da igrejinha da praça, também colocada pela prefeitura, afugentou a morcegada que morava nas figueiras da pracinha. Aqui na cidade ninguém se importa com a morcegada por que a gente sabe que eles se alimentam de mosquito. Mas, agora, não sei não pra onde eles foram. Suponho que eles tenham se bandeado lá pro lado do Quadrado, o morro que falei, lembra? Lá não mora ninguém, tá um pouco longe daqui e  tem bastante coisa pra eles comerem.

Mas cadê o Afonso? Hoje já faz um mês que recebi carta de minha filha Delina, mistura de Décio, meu nome, com Dealina, minha finada esposa. Só tirei o A pra não ficar com o nome da mãe, porque eu não sabia se pra mulher se coloca Filha ao final do nome. Acho que Junior não combina com mulher, assim, eu decidi mais o homem do cartório da cidade mesmo, porque aqui onde moro, a gente chama de cidade, mas é um povoadinho gostoso, só com uma rua comprida, uma mercadinho, mais uma quitanda, do que mercadinho, a igrejinha da praça, o coreto e o bar que fica colado ao mercadinho e pertence ao mesmo dono, ou melhor donos, seu Ernesto e dona Carlinha. São casados e muito gente boa, por sinal. Eles deixam a gente pendurar a conta, às vezes acima de dois meses, mas eles não se preocupam, porque sabem que todo mundo aqui honra os seus compromissos.Eu mesmo, às vezes, consigo encher umas duas a três caixas de laranja e levo lá pra vender no mercadinho Santa Esperança, nome emprestado de nosso povoado. Ah! esqueci de dizer que o posto do correio, o banco, a farmácia e a delegacia ficam lá na cidade, é perto daqui, meia-hora a pé, dez minutos de bicicleta, cinco de motinha. Eu tenho uma bicicleta, não é dessas modernas não, com marcha e tudo. Mas, a minha tem farolete, buzina e o meu celim e o banco do carona coloquei um acolchoado com o escudo do América do Rio, meu time de coração. Na verdade, escudo do América só no meu celim. No banco do carona,botei um acolchoado verde porque não quero criar polêmica com ninguém e além do mais não quero ninguém que torce pra outro time colocando a bunda em cima do meu Ameriquinha. De bunda, só a minha.

Bom, só pode ter acontecido alguma coisa com o Batisteu,  o carteiro. Tomara que não tenha sido nada grave. O Batisteu vem de bicicleta, mas às vezes, chega a pé mesmo, porque ele tem que deixar o veículo com a mulher Lindalva, pra fazer as compras. A bicicleta do Afonso é adaptada para levar os malotes do correio e a sua mulher Lindalva,ele a chama de Dalva, pra homenagear a primeira estrela que surge no céu e a última que se vai embora, que o pessoal chama de Estrela Dalva, mas eu aqui bem sei que não é estrela coisíssima nenhuma, mas um planeta, o tal de Vênus. Mas, que tem brilho de estrela, lá isso tem.

Se eu tivesse telefone eu ligava pro Cornélio, que mora na primeira casa  logo no início da rua pra saber se o Afonso já havia passado por lá, mas tanto ele quanto eu não temos telefone, nem celular, porque não instalaram antena, ainda. Tem um boato por aí que vão cortar algumas árvores lá no topo do Quadrado pra instalar a antena. Eu já vou dizendo que sou contra. Já mexeram no córrego do frade, já botaram lâmpadaria forte pra dedéu frente à igrejinha, só falta tirar as árvores lá de cima que dá aquela aparência de cabelo rente de recruta, ao Quadrado. Depois, primeira chuvarada forte, desce pedra, terra, árvore tudo lá de cima, estragando tudo por aqui embaixo e vai acabar deixando de ser Quadrado para virar estragado. Não existe a gente dizer: 'moro em Santa Esperança, no sopé do Estragado.'

Que coisa chata, eu aqui prendendo a sua atenção com o meu papo furado sobre a minha cidadezinha, os meus vizinhos, a minha filha, as nossas vidas aqui em Santa Esperança que você nem conhece, tudo para matar o tempo enquanto aguardo o carteiro Afonso Bastiteu me trazer a carta de minha filha Delina falando das coisas dela que tá fazendo lá no Rio de Janeiro.

Peraí, tá parecendo levante de poeira lá na curva onde tá a casa do Osvaldo Conceição, pedreiro dos bons, como já falei. Ih! tá vindo rápido, não é a bicicleta de Afonso, porque Afonso já tem idade e não consegue  pedalar muito rápido e mesmo que fosse, não tenho notícia de que bicicleta qualquer consiga levantar tamanha poeirada. E, vem rápido, tá se aproximando, tá chegando na minha porta. Parou e eu engoli um montão de poeira, agora. É um carro grande, salta dele uns sujeitos que nunca vi mais gordos, pergunta pelo meu nome: 'Seu Décio Soares da Costa Neiva?' -  'Sou eu mesmo à sua frente. Do que se trata, posso saber junto a quem pergunta?' Devolvi a pergunta, ainda me engasgando e quase cego com a quantidade de poeira. 'Só um momento' pediu o sujeito mais novo e com um boné com umas letras que não dava pra entender nadinha. 'Pois não!' falei eu já conseguindo melhor articular as palavras mesmo com a garganta seca pelas agruras da poeira esquentada pelo sol de quase já meio-dia e meia. Um dos outros três sujeitos apontava para mim uma câmera, um outro segurava um cabo tipo vara de pescar só que lá em cima, na ponta, havia um baita microfone e o outro, um tipo meio esquisito, que usava um brinco enorme na orelha esquerda e portava um rabo de cavalo bem comprido, comprido até demais para ser de homem, segurava uma espécie de prancheta, onde ele fazia anotações e lia alguma coisa para o homem que estava falando comigo. De repente, me aparece saído do outro lado do carrão, o Afonso Bastisteu todo sorrindo e vindo em minha direção para como se fosse me abraçar. Achei estranho, Batisteu me abraçando. Mas, não quis ser grosso lhe retribui o gesto, dando três tapinhas nas costas e perguntando pela carta de Delina, porque sabia que hoje era o dia de receber carta de minha filha. Ele me falou que não havia carta nenhuma, que era pra eu esperar, porque aqueles homens lá tinham uma coisa pra mim. Fiquei escutando o homem que havia me perguntado pra confirmar o meu nome, Décio Soares da Costa Neiva, falando ao telefone com alguém. Uai??? falando ao telefone, como podia, se ali naquela terra escondida até de barata não havia antena de telefone 'cerlular' até hoje me engano ao pronunciar o nome. Tenho que falar mais devagar porque aí eu não erro o nome. Ele tava perguntando, me parece, por um outro veículo, mandando-o vir, coisa assim. Foi quando despontou lá na esquina do Osvaldo Conceição um baita, mas um baita caminhão, vinha devagar, não levantava poeira e deu pra ver um monte de gente, muitos a pé, alguns poucos de bicicleta, acompanhando o caminhão como se em cortejo estivessem, cruz credo. Era o povo da cidade. O que estava acontecendo?

De novo, o tal sujeito, se dirigindo a minha pessoa, falou o meu nome: 'Decio Soares da Costa Neiva, o seu Dé,' disse cheio de intimidade o meu apelido que só os meus familiares conheciam e me tratavam por ele. E, eu perguntei todo curioso como ele sabia o meu apelido. Foi quando eu escutei a voz de Delina vindo de trás de mim: 'Fui eu que contei pra eles, papai!' Era a minha filha Delina, que já não via mais de ano, e com ela, bonita e bem vestida, tava o marido, Leovaldo e meus dois netinhos, Letícia Aparecida e Juan Leovaldo. Foi uma emoção só, poder receber abraço gostoso da minha única filha, Delina, e de meus netinhos Letícia, que logo me sapecou um beijo na minha bochecha coberta por uma barba de cinco dias, e do Juanito que com seus bracinhos envolveu o meu pescoço e nele se pendurou. Também recebi um abraço de Leovaldo. E, ficamos alguns segundos que pareceram minutos. Eu tava com os olhos marejados e o pessoal que saltara do caminhão tava carregando um monte de coisas lá pra dentro de casa. Geladeira, fogão, televisão, computador, aparelho de som, máquina de lavar roupa, bicicleta, duas motos, um carro zero quilômetro, quatro portas, ar condicionado. Depois, recebi um cheque no valor de R$ 500 mil reais e um projeto de nova casa que seria construída em breve, inteiramente grátis. Perguntei do que se tratava e o sujeito que perguntara pelo meu nome, Décio Soares da Costa Neiva, disse-me que era do programa de televisão "Seu Sonho a Gente Realiza" e que a minha Delina, havia escrito dizendo que o sonho que ela tinha era poder fazer tudo isso pelo pai dela. E, foi o que aconteceu. Foi quando eu perguntei pela presença do Afonso Batisteu, o que ele tava fazendo ali??? que escutei meu nome: Décio, ô Décio, que houve véio? Tá dormindo. Levei um susto, abri os olhos e me deparei com o próprio Afonso Batisteu, apontando em minha direção uma carta, a carta de Delina. Olhei em torno, não vi ninguém. Onde tava todo aquela gente. 'Tava sonhando, véio?' perguntou Afonso. E, eu  meio que ainda tonto, respondi, 'sei lá. Acho que sim, homem!' E, emendei, pra não perder a pose: 'Por onde você andava, rapaz? Já são quase uma da tarde e você não havia chegado.' Quê isso, Décio? Tá variando das ideia? São onze e meia, tô no horário de sempre. Que relógio é esse que você tá usando? Eu hein!!!' E saiu rindo, me deu bom dia e continuou seu caminho a pé em direção ao fim da rua, que findava na pracinha da igrejinha, emoldurada pela vista do morro do Quadrado.

Sacudi um pouco a cabeça, respirei fundo, olhei pro céu, azul, azul, azul. E, soltei o ar de meus pulmões meio que sentido por ter sido tudo aquilo apenas um sonho. Mas, que foi gostoso, ah, isso lá foi, meu amigo. Desculpe por tomar seu tempo, mas é que eu tava aguardando por Afonso, o carteiro, de nosso povoado de Santa Esperança. Taí um bom nome para torcer que o meu sonho se torne realidade. Até!

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