10.23.2008

Pé-de-vento

O que eu vou contar agora pode parecer mentira, invenção, mas aconteceu de verdade e esses olhos que a terra há de comer um dia bem longe de hoje, testemunharam tal caso que agora eu começo a contar.

Quando era ainda moleque lá pros cantos de Carmo de Minas, pra quem não conhece, uma cidadezinha vizinha ao município de São Lourenço, famosa estância de águas minerais do sul de Minas, costumávamos eu e meus amigos, tudo ali beirando na idade dos 9, 10 anos de idade, brincar pelas ruas que terminavam nas encostas das montanhas que circundavam a cidade. Não tinha hora pra brincar, não! Ainda mais no tempo das férias escolares, quando a meninada tomava conta das ruas compartilhando-as com charretes e bicicletas do pessoal local. Naquela época, automóvel, só dos veranistas e dos donos de fazendas próximas. Pessoal endinheirado e barulhento, com filhos e filhas que se juntavam à gente na maior alegria do mundo, pois se entregavam às ruas com vontade, sem perigo dos carros que já enchiam as ruas das cidades grandes, especialmente, das do Rio de Janeiro, de onde vinha a maioria deles. Eram uns moleques legais, mas lembro que tinha um garoto tinhoso, metido que ele só e que gostava de implicar com todos os outros garotos e garotas, especialmente, conosco lá da região. Ele nos chamava de caipirinhas, bichos-do-mato, matutinhos, roceiros e por aí vai. Por causa disso, éramos motivo de riso de todo o resto da garotada. Lembro que a gente ficava um tanto vexado com a situação, mas fazer o quê? o garoto era da cidade grande, conhecia tudo que a gente não conhecia, até a praia o danado conhecia e bem, segundo ele. Ele levava uma baita vantagem sobre os garotos locais com relação às meninas, pois ele sabia até como seria o último capítulo da novela. É, é verdade! Naquele época as programações das televisões para as cidades do interior eram atrasadas em um dia, tirando o Jornal Nacional e Repórter Esso que passavam ao mesmo tempo que no Rio de Janeiro e São Paulo, as novelas passavam sempre com atraso de um dia, e, então, o Serginho pelo menos durante o primeiro dia de sua chegada, se gabava por saber o que ia acontecer no capítulo da novela que seria exibido naquela noite. As meninas ficavam todas cheias de curiosidade e admiração por aquele carioquinha engomadinho.

Mas, o que eu quero contar aqui é o que aconteceu com ele, o Serginho, numa noite de lua cheia lá em Carmo de Minas. Fazia muito frio naquela noite. O clima seco somado ao inverno da região, fazia um frio daqueles de lascar. Ficar cinco minutos ao relento era praticamente insuportável, mas todos nós éramos garotos e bem encasacados a gente acabava por enfrentar o frio. A fogueira quase não adiantava para quebrar a friagem, mas lembro que todo mundo se esquentava em volta dela trocando estórias, sempre estórias de assombrações, aparições, sumiços de gente e bicho pelas estradas e ruas desertas das paragens de Carmo e arredores. Mas me lembro muito bem daquela noite, moço, com o vento que de repente começou a soprar descendo das montanhas da fazenda do seu Onofre. As árvores assoviavam alto na passagem da ventania, os cabelos das meninas mesmo trançados batiam-lhes nos olhos, as chamas da fogueira nervosas tentavam se manter acesas, a poeirada da terra seca sacudia-se e enchia as nossas gargantas e olhos quase ao ponto de nos sufocar e cegar. Tudo aquilo era algo que a gente nunca havia passado. Foi quando olhando para o céu a esta altura já com as estrelas dançando freneticamente por conta do vendaval, avistamos uma grande nuvem muito alva, mas tão alva que parecia que a lua havia se escondido nela pra não ser levada pelo vento grande que açoitava a cidade. Mas a lua estava do lado oposto, ainda brilhando como que a alumiar o caminho por onde a ventania deveria seguir adiante e deixar a nossa Carmo quieta em seu lugar. Todo mundo estava encolhido muito mais por medo que do frio. As meninas choravam e gritavam pela mãe, pelo pai, quem tinha, ou pela avó ou tia, quem já não os tinha. No desespero, elas xingavam a gente e nos culpavam por causa das estórias de fantasmas e assombrações que a gente cismava em contar nas noites frias aquecidas pelas fogueiras. A gente também estava apavorado e da mesma forma que elas, não conseguímos sair dali e ir se acoitar num lugar mais protegido. Sentindo que a ocasião era especial para mais uma vez se para a turma, principalmente, para as garotas, o Serginho começou a gritar para o vento ordens de parar. Mas, gritava tanto que acabou aumentando o nosso medo, que agora já era pavor. A gente pedia pra ele voltar pro seu canto e ficar quieto, mas ele parecia tomado por lá não sei o quê e continuava a desafiar com gritos e xingamentos o vento, e agora, a nuvem, que parecia estar mais baixa, quase tocando o campanário da igreja, cujo sino obrigado pelo vento badalava e dobrava ao seu comando. O Serginho quando percebeu que a nuvem se abaixava ainda mais, partiu pra cima dela com os braços levantados gritando todos os impropérios que um garoto de dez anos da cidade grande já dominava, foi quando um braço de nuvem pareceu avançar em sua direção. O janotinha valente pressentindo o perigo, tentou dar meia-volta e sair correndo, mas o braço de nuvem como a perceber-lhe a tática, esticou-se rapidamente como um elástico e o envolveu, impedindo-o de se mexer até que o restante da nuvem o cobrisse por completo. Nisso, o nimbo começou a subir rapidamente, cujo movimento foi acompanhado por todos nós. Àquela altura, estávamos preocupados com Serginho e o imaginávamos imóvel no chão duro que nem pedra de gelo por causa do frio intenso que a nuvem havia trazido quando mergulhou até o chão. Mas para a nossa surpresa, nem sinal do Serginho. Gritamos o seu nome, a coragem nos empurrou em direção ao barranco, depois à carroça encostada, a procura do garoto, e nada, nada, nada. Ficamos em silêncio tentando adivinhar o que poderia ter acontecido com o moleque metido, mas a sensação de medo que parecia ter se atenuado um pouco, possuiu-nos novamente, fazendo-nos tremer da mistura de frio com pavor e nervosismo. Ficamos todos parados um a olhar para o outro somente escutando o zunir do vento que levava a nuvem para bem longe de onde estávamos, até que Joana, a menina mais nova do grupo, perguntou se não estávamos escutando a voz do Serginho bem ao longe. A gente apurou os ouvidos e, realmente, podia-se escutar a voz do Serginho muito distante, fraca, pedindo socorro, para que tirassem ele dali. A gente olhava para os lados para ver se o encontrava, mas ele não estava em nenhum lugar. Prestamos atenção no som que se afastava, cada vez mais fraco, e para nosso assombro, compreendemos que a voz do Serginho estava vindo da nuvem. O Serginho havia sido levado por ela.


O vento amansou, o sino cessou de badalar, as árvores respiravam cansadas, porém, aliviadas de toda aquela tormenta, mas ali nenhum de nós sabia explicar o que havia realmente acontecido.


O Serginho nunca mais apareceu. Nós nos tornamos adultos, muitos mudaram-se para outras cidades, alguns até mesmo para outros países. Mas, eu fiquei em Carmo de Minas e até hoje, em noites de vento forte e nuvens carregadas e brilhantes passando baixas por cima da cidade que já cresceu um pouco mais, tenho a sensação real de escutar a voz do Serginho, ainda voz de moleque, que nem a daquela que escutei em noite de lua cheia há muitos anos, pedindo para tirá-lo de lá. Assim como um pé-de-vento o arrebatou à nuvem, fico na esperança de que outro pé-de-vento o traga de volta, quem sabe, junto com a nossa infância das noites de frio e fogueira de Carmo de Minas.

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